Uma reflexão sobre a Apresentação de Caso Clínico
Que a clínica nos impõe questões, isto é fato.
Seja a nível de nossa prática, o que necessariamente nos remete
à uma reflexão ética acerca de nossa postura frente ao
paciente, ou a nível conceitual, de avaliação ou não,
daquilo que se propõe teoricamente. É o momento de interrogarão
tanto da eficácia como dos limites desta prática.
Ao nos depararmos pela primeira vez com o desafio de realizarmos um trabalho
clínico, é inevitável nos defrontarmos com esta situação
(ou pelo menos deveria ser). O percurso pelo Estágio de Psicologia
Clínica é, para nós, a oportunidade de uma reflexão
neste campo teórico-prático, é o início da construção
do que virá a ser nossa postura clínica para além do
âmbito acadêmico. Também por isto, estas interrogações
certamente não cessam aí.
Fundamentalmente, ao tomarmos a psicanálise como referência à
nossa prática, é mister situarmos a clínica como sendo
também um espaço de pesquisa, no sentido de ser na clínica
que, ao escutarmos o paciente, podemos construir a partir da fala deste, nossos
questionamentos, e assim, articularmos conceitualmente este discurso.
Em suma, todo o corpo teórico da psicanálise tem sua origem
na clínica. Se a psicanálise possui hoje um alcance teórico
bastante amplo, isto é devido à clínica. Freud e Breuer
já procediam desta forma ainda em um período “pré-psicanalítico”,
as primeiras proposições teóricas realizadas por ambos
tiveram sua efetivação a partir dos casos clínicos da
Srta. Anna O. e da Sra. Emmy. Sendo que a primeira paciente de Breuer propiciou
à Freud perceber os vestígios do que viria posteriormente teorizar
enquanto transferência, elemento fundamental a qualquer tratamento analítico.
Apesar da psicanálise propor trabalhos, já desde Freud, para
além da clínica, como as leituras do social, ou dos sintomas
sociais a inúmeras interlocuções teóricas com
várias áreas do conhecimento, como a topologia, a lingüistica,
a literatura, dentre outras; o que se produz neste campo intervém diretamente
na clínica, é em função da prática que
se busca este tipo de articulação. Por outro lado, o que se
propõe neste nível, somente tem valor a partir do momento em
que pode ser comprovado pela clínica. É pela prática
clínica que o conceito abstraído de uma interlocução
ou de uma leitura do social é validado.
A oportunidade de um trabalho clínico institucional que a Clínica
de Psicologia da UNIJUI viabiliza, é de uma importância tanto
para a formação profissional do estagiário, quanto para
a produção teórica, uma vez que possibilita a discussão
conjunta por parte dos estagiários e supervisores das questões
que a prática nos remete. Uma das atividades desenvolvidas pela Clínica
- a Apresentação de Caso – tem como um de seus objetivos
justamente a interrogação da teoria frente a prática.
É sobre esta atividade que nos propomos a discutir.
No momento em que nos propomos a apresentar um caso clínico, é
necessário que nos perguntemos de que maneira isto pode se efetivar,
uma vez que não se trata de um simples relato dos atendimentos realizados
para que dispondo disto possamos discutir o caso em conjunto. É preciso
ampliar um pouco esta visão. Para tanto cabe questionar primeiramente:
o que é um caso clínico?
Um caso é uma ficção, porém, “uma ficção
clínica, resultado de uma hipótese teórica” (SOUZA,
2000,p.23). É precisamente aí que questionamos o valor de um
mero relato de caso, no intento de apresentar a história exata de vida
do paciente, o situando no campo de uma produção. De quem? De
quem é a ficção que contamos em um caso clínico?
Ou ainda, como ela se produz, a partir de que elementos?
Construímos o caso a partir da fala do paciente, mas para além
disso a partir da nossa escuta. O caso se produz justamente neste encontro
de uma fala com uma escuta. Ou, porque não dizer, do desencontro da
fala e da escuta? Por mais estranho que isto possa parecer, é justamente
onde a fala do paciente nos faz resistência que elegemos os elementos
que irão constituir a narrativa da ficção.
Trata-se do momento em que a fala do paciente interpela e confronta à
quem escuta “no limite do fantasma que o suporta e da teoria que o orienta”
(ibid. p.21). A este ponto, de um não saber, que dirigimos nosso olhar.
Dele, trazemos no caso, não somente os elementos discursivos que o
paciente enuncia, mas o momento, o lugar no qual ele se enunciou. De fato
é disto que se trata, muito mais do lugar do que da fala em si. Até
porque se o principio da escuta é o da transferência, o que nos
importa é em que lugar transferencial algo foi enunciado, e de que
lugar transferencial escutamos.
“O caso, nesta perspectiva, revela não só o sujeito que
fala do seu sofrimento, como também o analista que escuta” (
ibid. p.18). Neste sentido, ao realizarmos uma atividade de apresentação
de caso clínico, nossa responsabilidade ética, enquanto instituição,
não incide somente sobre a fala do paciente, apresentada, mas também
acerca do que é enunciado por parte de quem apresenta o caso.
Este tipo de atividade deve levar em conta que não se trata de escutar
o que aí pode aparecer do lado de quem faz o relato, e igualmente o
que concerne ao paciente em questão. Deve-se compreender o caráter
ficcional do caso, e que, sua apresentação não tem o
intuito de expor o paciente a uma análise por parte do grupo, este
não está ali para interferir no tratamento, a contribuição
do grupo incide sobre o caso apresentado e não sobre o âmbito
do tratamento. É claro que não temos garantias de como fará
marca em quem apresenta, a intervenção do grupo, sendo que este
pode acabar levando estas construções ao tratamento de seu paciente.
Não há como interpretar a fala de um paciente em grupo, a interpretação
pressupõe uma escuta e esta, pressupõe que haja o endereçamento
de um saber-suposto, reafirmando, que haja transferência. Quando o grupo
direciona sua atenção sobre o caso não é para
interpretá-lo, só quem pode fazê-lo é quem o apresenta.
Do contrário estaríamos tentando aplicar um saber psicanalítico
sobre um não saber, do caso. Lacan, afirma que “A psicanálise
só se aplica, em sentido próprio, como tratamento, e portanto,
a um sujeito que fala e que ouve.” (1998[1960], p.758). Fora do contexto
clínico, ou seja, a prática que propõe a psicanálise
aplicada, “só poderia sê-lo, num sentido figurado, isto
é, imaginário, baseado na analogia e, como tal, desprovido de
eficácia” (ROUDINESCO, 1998, p.608).
Para que se propõe então uma apresentação de caso?
Ela se dá no movimento contrário ao da psicanálise aplicada.
Não se trata de enquadrar um caso em uma estrutura teórica pré-estabelecida,
mas de, a partir do caso, discutir teoricamente as questões que o caso
pode nos incitar. E neste sentido é de grande importância na
formação, uma vez que a partir desta apresentação,
questões que o clínico nos remetem possam ser debatidas em conjunto.
É a oportunidade de produzirmos, na direção de uma melhor
compreensão ou até de inovação teórica.
É também por esta razão que se justifica a apresentação
do caso. Pelo valor de interrogação teórica que ele produz,
pela interação de teoria e prática. Tendo clara esta
dimensão, é provável que não caiamos no exercício
de um gozo que a aplicação de saber poderia suscitar. Neste
contexto saímos do campo da suposição para adentrarmos
no campo da teoria, é o que garante que ao estarmos Falando Nisso...,
um limite ético se imponha.
LACAN, Jacques.
Escritos. A juventude de gide ou a letra do desejo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998 [1960].
ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998.
SOUZA, Edson. (A vida entre parênteses). Correio da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre: n° 80, jun.2000.