O
tema da clínica institucional parece vir se impondo para reflexão
e debate no campo psi. Situo sua atualidade para nós em razão
da opção teórica pela psicanálise que demarca nossa
Clínica – a Clínica de Psicologia da UNIJUÍ. Como
se sabe, a clínica psicanalítica se fundou no modelo da clínica
dita privada, de consultório, na qual um profissional – analista
– recebe um paciente que vem a ele endereçado, com o pedido de
aliviar seu sofrimento psíquico. A difusão do discurso psicanalítico
na cultura tem tido como um de seus efeitos a inserção da prática
psicanalítica em instituições de atendimento, um efeito
que extravasa o modelo de fundação da clínica psicanalítica
e que está aí a exigir que dele nos ocupemos.
Quando há pouco referi a opção teórica pela psicanálise,
já ali pensei que era necessária uma precisão: a opção
pela psicanálise demarca uma referência teórica e ética.
Trata-se de trabalhar com um corpo conceitual definido, em que o inconsciente
e a transferência são as referências diretivas, sustentando
e sustentando-se numa posição ética particular.
Não vou aqui me deter nos antecedentes da clínica psicanalítica
contemporânea, embora pense que se tratam de elementos fundamentais que
devemos ter presente em nossa reflexão. Para isto, remeto ao trabalho
apresentado por Conceição Beltrão, na última Jornada
da Clínica da UNIJUÍ, intitulado “As resistências
à clínica”, publicado em nosso Informativo “Falando
nisso”. Ali encontramos uma exposição informativa e interpretativa
de relevante acuidade, em que são discernidos eixos fundamentais para
a questão que nos ocupa, situados numa perspectiva em que o conceitual
e o cultural se imbricam, o que por si já demarca uma determinada posição
interpretativa.
Penso que podemos partir do que a autora ali situa como modos de operar presentes
na formulação da clínica psicológica contemporânea
que fazem obstáculo, isto é, resistência a escuta do inconsciente.
Tratam-se do lugar do psicólogo como observador, da moral como parâmetro
para a cura e da paixão pelo procedimento.
Na história da clínica das patologias mentais o privilégio
à observação aparece contraposto à posição
de primazia à escuta, inaugurada por Freud. Tomando como exemplo um instrumento
bastante utilizado na preparação acadêmica de psicólogos,
a sala de espelhos, a autora assinala que na posição de observador
se encontra desconsiderado o próprio conceito freudiano de transferência,
pelo qual aquele que escuta está implicado naquilo e com aquilo de que
o paciente fala. Pela transferência, o inconsciente será posto
em operação, atualizando-se na medida em que aquele que escuta
possa se deixar tomar na fantasia daquele que fala, sem se tomar por isso. (BELTRÃO,
2000:3)
Lacan nomeou semblante esta função, cujo objetivo é “...
oferecer ao diálogo um personagem tão desprovido quanto possível
de características individuais; nós nos apagamos, saímos
do campo em que possam ser percebidos o interesse, a simpatia e a reação
buscados por aquele que fala no rosto do interlocutor; evitamos qualquer manifestação
de nossos gostos pessoais, escondemos o que pode traí-los, nos despersonalizamos
e tendemos, para este fim, a representar para o outro um ideal de impassibilidade.”
(LACAN, 1948: 109) Tal posicionamento possibilita que aquele que escuta se faça
suporte da fantasia subjacente, habilitando-se ao passo seguinte, que é
interpretá-la. Como se vê, fica assim inviabilizada qualquer pretensa
exterioridade nisso que, não por outra razão, se denomina laço
transferencial.
Quanto ao segundo elemento destacado pela autora como resistência à
escuta do inconsciente – a moral como parâmetro para a cura –
ele pode estar presente através de todos aqueles elementos que veiculem
uma idéia antecipada do que é “bom” para o paciente
e para a sociedade, eximindo-se de referir-se “ao processo da experiência
que se dá no momento mesmo da fala”. Situa aí “conceitos
corriqueiros” como o de prognóstico e o de prevenção,
com seus respectivos desdobramentos na clínica. (BELTRÃO, 2000:
3/4)
No terceiro elemento, situado muito propriamente como paixão pelo procedimento,
a autora aponta como aí se encontra novamente elidida a relação
com o outro: “a patologia e suas produções são mantidas
à distância e o psicólogo faz parceria de submissão
ao procedimento ou à técnica, como defesa frente às múltiplas
formações do inconsciente”. (Id., ib.) Faz notar que tanto
a moral como a instrumentalidade estão em decorrência da posição
de observador. Aqui marcamos que se privilegia uma exterioridade que é
contrária à noção psicanalítica de experiência
como implicação subjetiva.
A referência sumária que acabo de fazer aos elementos situados
por Beltrão tem como propósito balizar uma reflexão sobre
a experiência que vimos fazendo na Clínica de Psicologia da UNIJUÍ,
na perspectiva de interrogarmo-nos acerca das vicissitudes de uma experiência
que propõe a inserção do discurso psicanalítico
no âmbito acadêmico, no qual se mesclam o tratamento, o ensino e
a pesquisa.
A Clínica de Psicologia da UNIJUÍ está estruturada por
um Conselho (composto pelos professores supervisores, um professor convidado
de reconhecida experiência clínica e um representante dos estagiários
e extensionistas), um Coordenador, indicado pelo Conselho para um período
de dois anos, um conjunto de estagiários de psicologia clínica
que se renova a cada semestre e estagiários extensionistas – acadêmicos
que já concluíram o estágio curricular de psicologia clínica
e realizam um estágio opcional.
De modo geral, é possível identificar duas dimensões de
trabalho. Uma particular e individualizada, representada pelo atendimento individual
aos pacientes e pela supervisão individual e semanal aos estagiários
e extensionistas e outra dimensão que é institucional, representada
pela atividades coletivas – apresentações clínicas
semanais (coordenadas por um professor supervisor), reuniões gerais quinzenais,
reuniões mensais do Conselho, comissões de trabalho (compostas
pelos estagiários e extensionistas) e projetos em andamento (coordenados
por um professor supervisor, com o acompanhamento de um monitor). O eixo norteador
de todo o trabalho é o da transferência, o que aparece na definição
do professor supervisor, na direção da escuta clínica,
bem como no tratamento das questões que vão surgindo no decorrer
do trabalho, algumas das quais abordarei a seguir.
Tomemos, por exemplo, a atividade de apresentação clínica,
na qual um estagiário ou extensionista apresenta ao grupo de colegas
um dado caso clínico, acompanhado por um supervisor que não aquele
que supervisiona os atendimentos que realiza. A perspectiva deste trabalho é
a de constituir um momento de reflexão teórico-clínica
sobre o caso em questão, composto pela contribuição dos
participantes. Trata-se de uma atividade fundamental para a formação
do psicólogo, na medida em que se constitui num momento clínico
no qual se exercita o testemunho sobre o trabalho realizado. Este elemento de
testemunho se acrescenta ao clássico tripé definido por Freud
como essencial na formação de um praticante: a análise
pessoal, a supervisão e o estudo da teoria. É um momento privilegiado
em que se oportuniza uma interseção entre a dimensão particular
e a dimensão institucional. Penso que aí a palavra testemunho
é especialmente significativa, pois ela faz referência tanto a
particularidade da escuta do caso em questão, como a uma dimensão
social, por assim dizer, pois um testemunho é dado a alguém. A
alterização que aqui se opera, e que é diferente da alterização
da escuta que opera na supervisão, remete o praticante para a responsabilização
por seu trabalho entre seus pares, função essencial da instituição.
O estabelecimento da modalidade de acompanhamento por um supervisor que não
aquele que supervisiona o caso vai na direção de sublinhar esta
função.
Na experiência cotidiana verificamos que, na participação
e no envolvimento com esta atividade, os estagiários vão progressivamente
deslocando-se de uma referência eminentemente narcísica para um
posicionamento conseqüente à proposta da atividade, o que possibilita
trabalhar entre os pares as complexidades da escuta clínica. Aí
se alicerçam as bases de uma transferência de trabalho, o que pode
ser ilustrado pelo depoimento de alguns estagiários no sentido de que
deixam de se constranger em trazer os casos que “não estão
dando certo”. Para o estabelecimento desta perspectiva, o posicionamento
do supervisor responsável é fundamental; ele deve atuar de modo
preciso, preservando eticamente a transferência em jogo no caso (paciente
/ estagiário / supervisor) e orientando o trabalho na direção
proposta.
Para a elaboração destas reflexões, além das referências
à contribuição de Conceição Beltrão,
já mencionadas, contei também com as elaborações
de dois colegas – Liz Nunes Ramos e Ubirajara Cardoso – através
de seus textos publicados no CORREIO da APPOA de junho último, dedicado
à temática “Falas da Clínica”, os quais recomendo
para leitura. Ali ambos se dedicam a examinar as especificidades da prática
clínica orientada pela psicanálise no âmbito institucional.
Um dos aspectos destacados, situado na perspectiva da transferência, diz
respeito a uma inclinação comum no trabalho institucional, que
produz efeitos absolutamente contraditórios com a proposta psicanalítica,
que é a possibilidade de que ali se dê vez e voz ao sujeito [do
inconsciente / de desejo]. Citando RAMOS: “... para muitos que exercem
uma prática em instituições é difícil evitar
uma tendência à diluição da singularidade do desejo
no saber do grupo”.(Op. cit., p. 41) E prossegue a autora: “...não
colocando o inconsciente em ato em transferências singulares, anula-se
a possibilidade de reconhecer-se como autor do que se produz como efeito dessa
transferência, gerando a busca desse reconhecimento num outro ou no grupo.”
(Id., ib.) CARDOSO aborda também esta questão ao referir e, neste
ponto, diferenciar a chegada de um paciente para atendimento no consultório
privado e na clínica de instituição pública. Trata-se
do que, na falta de um termo melhor, vimos chamando de “anonimato”
para descrever a forma como habitualmente se apresenta o pedido de tratamento
de um paciente que procura uma instituição. Diz o autor: “Num
exorbitante esforço de síntese, diria que o primeiro trabalho
será o de produzir a condição para que o paciente reconheça
que seu pedido, apesar de ser feito na instituição pública,
exige que ele torne privado o espaço de sua cura, se assim podemos dizer.
Esse privado, é claro, se mostrará depois ser o mesmo que o seu
sintoma. De outra forma, será muito difícil que sua demanda possa
ser singularizada.” (Op. cit., p.63)
No desdobramento desta questão o autor aponta um aspecto fundamental
para nosso propósito: “a questão parece ser de fato que
a qualidade de ‘público’ parece fazer desvanecer, inclusive
do lado do terapeuta, aquilo que chamaria, com cuidado, de autorização
para se propor o enquadre terapêutico. (...) Observo, de passagem, que
são nessas situações que normalmente se fazem sentir as
intervenções das normas institucionais nos tratamentos.”
(Id., ib., grifo meu) Penso que aqui se aponta uma das complexidades deste trabalho
– diria mesmo um desafio. Pretendo a seguir examinar alguns aspectos da
experiência da Clínica de Psicologia, tendo por referência
este aspecto.
Nesta perspectiva, tomarei dois temas que parecem se prestar de modo privilegiado
para produzir equívoco entre as dimensões particular e institucional,
requerendo um cuidado cotidiano em sua condução para que, ao fazer-lhes
frente, se possa preservar a filiação propriamente psicanalítica
do trabalho. Tratam-se da questão do pagamento e da questão dos
registros.
A Clínica de Psicologia da UNIJUÍ, diferentemente de outras instituições
de atendimento abertas à comunidade, propõe o pagamento dos atendimentos
realizados. Tal pagamento não está fixado antecipadamente, de
acordo com qualquer critério preestabelecido, mas é estipulado
entre o paciente e o estagiário que o atende, de acordo com o pronunciamento
do paciente a este respeito. São bem conhecidos, no campo psicanalítico,
desde Freud, os argumentos que embasam este modo de operar. Coerentemente com
o princípio da transferência, é na particularidade de cada
caso, trabalhada em supervisão, que se vai tratar deste como um entre
outros elementos daquela configuração transferencial particular.
Contamos aqui com questões – certamente não negligenciáveis
– relativas à inexperiência dos praticantes. A questão
da cobrança de pagamento parece ser, aliás, uma questão
muito permeável a produzir resistências, na medida em que põe
em ato a demanda de um posicionamento singularizado, desprendido de anteparos
institucionalizados, que serviriam para poupar o paciente do incumbir-se do
que lhe cabe – e ao praticante também!
Para além desses aspectos, no entanto, tem insistido entre nós
uma questão que se manifestou em diversas feições, propondo-nos
reflexão. Trata-se de uma interrogação acerca do destino
dos pagamentos dos pacientes. Talvez esta interrogação situe justamente
a complexa interseção entre o que chamei a dimensão individual
e particularizada e a dimensão institucional. Se pensamos o pagamento
como representando para o paciente um corte em seu gozo, no gozo do sintoma,
o dinheiro é aí instrumento simbólico para este efeito;
bem por isto não consideramos seu valor absoluto, mas relativo. Assim,
a questão não é quanto paga e analogamente talvez possamos
dizer nem a quem paga. Nessa perspectiva, situar a questão no destino
dos pagamentos – ainda que com razoáveis propósitos, como
o “investimento” na Clínica – parece apontar na direção
de um efeito da problematização do lugar de escuta – o que
está aí a demandar trabalho analítico.
O outro tema que situei como pertinente para a perspectiva abordada é
o dos registros, com o qual me refiro ao material documental que se possa produzir
a partir do trabalho. Este elemento remete diretamente à oportunidade
de teorizar acerca do trabalho realizado, abrindo possibilidades de investigação
e produção de conhecimento a partir da experiência realizada.
Na experiência da Clínica de Psicologia a recusa sistemática
em definir procedimentos estandartizados, aliada ao cuidado relativo ao sigilo
e à ética, parecem ter produzido algumas distorções,
com as quais nos encontramos trabalhando na atualidade.
Um exemplo eloqüente é o do fichário dos pacientes –
que consistia num registro breve de dados de identificação, com
um pequeno espaço para observações acerca da finalização
do atendimento (quando o paciente deixava de vir à Clínica ou
quando o estagiário encerrava seu período de estágio).
Uma vez que a orientação é a de que, na mudança
de estagiário, se constitui um novo laço transferencial, com todas
as vicissitudes aí envolvidas, sendo contra-indicada a consulta às
observações relativas ao atendimento anteriormente realizado,
o fichário foi deixando de ser ocupação dos estagiários
até surgir deles a surpreendente proposta de abolir o fichário
geral da Clínica em favor de um fichário privativo que cada estagiário
mantivesse de seus pacientes!
A partir daí criaram-se dois sistemas de registro: um cadastro geral,
em nível de Secretaria, exclusivamente com os dados de identificação
e um registro clínico, sem identificação nominal, contendo
o motivo da procura (a queixa do paciente), assim como outros atendimentos realizados
(avaliação neurológica, psiquiátrica, etc.). O preenchimento
deste registro é feito cuidadosamente no quadro do caso pelo estagiário
responsável, acompanhado pelo supervisor. Penso que com esta breve apresentação
é possível acompanhar a construção de bases para
a pesquisa que nascem diretamente de uma experiência de trabalho.
No encaminhamento para a finalização destas reflexões,
considero que, passo a passo, vimos trabalhando para a constituição
de um espaço clínico institucional, orientado pela escuta do singular,
num âmbito socializado, no qual se possa compartilhar e debater questões
clínicas numa perspectiva ética e de construção
de uma reflexão teórica.
Uma última palavra sobre a análise pessoal. O fato de estarmos
num ambiente acadêmico, referidos – necessariamente referidos -
à determinações curriculares, impõe certas marcas,
com as quais temos constantemente que nos haver, na medida em que aqui e ali
se contradizem o discurso universitário e o discurso analítico.
O exercício clínico sustentado na psicanálise convoca o
praticante a buscar sua experiência pessoal de análise –
seja a partir da angústia que lhe produz a posição de escuta,
seja a partir da convocação a seu próprio desejo, à
sua implicação e responsabilização. Isto é
o que podemos esperar como efeito da condução do trabalho, porque
análise pessoal não se pode prescrever.
Finalizando, então, desejo dizer que para realizar esta intervenção,
além de minha própria experiência como supervisora da Clínica
de Psicologia, contei com a leitura cuidadosa das atas das reuniões,
registradas no Livro de Atas da Clínica. Desta leitura, gostaria de sublinhar
a importância do registro do “vivo” de cada discussão,
muito além da mera enumeração de decisões e fatos,
realizado por diferentes pessoas – estagiários, extensionistas
e supervisores – nos sucessivos semestres de seu funcionamento. Graças
aos relatos clínicos e transferenciais ali registrados, foi possível
acompanhar os desdobramentos da construção da Clínica até
o momento, cabendo-me aqui situar algumas das questões que nos têm
interrogado e que seguem constituindo matéria de reflexão e teorização
para nosso trabalho.
Desejo, finalmente, expressar meu reconhecimento à atual Comissão
de Patrimônio e Eventos que me convidou a realizar esta intervenção
e em especial à minha colega, professora Cristian Giles, que sugeriu
que eu abordasse a questão da clínica institucional, confiando-me
esta tarefa complexa, mas enriquecedora. O percurso que realizei para concretizá-la
constituiu-se afinal em oportunidade para formalizar o projeto pelo qual sou
responsável, denominado “A Construção da Clínica”,
na perspectiva do qual apresento esta como uma primeira produção.
* Texto elaborado pela prof. Lucy Linhares da Fontoura