O TEMPO DA HISTERIA:
CONSIDERAÇÕES SOBRE O COLETIVO E O SUJEITO DO INCONSCIENTE

Ana Costa

No decorrer dos séculos, a histeria sempre foi associada a uma certa imagem de ridículo que por vezes suas personagens podem transmitir. Esse ridículo liga-se a algo revelado como uma espécie de encenação. Freud não achou essa mentira desprezível. Pelo contrário, deu-lhe uma condição semelhante a um universal, na medida em que é pela histeria que ele descobre o inconsciente. Não parece estranho isso, que uma mentira possa adquirir a condição de um universal?
Gostaríamos de propor aqui algo que é tematizado pela histeria e que talvez se explicite com algumas contraposições que indicam vias de interpretações distintas. Destaquemos duas delas: singular, por oposição a universal; individual, por oposição a coletivo. Essas considerações, num primeiro momento, parecem distanciadas da clínica da histeria. No entanto, se tomarmos dois significantes que insistem no discurso organizador dessa clínica, imediatamente traçamos as aproximações. Esses significantes são: ser a única e ser a outra. A "única", uma unidade inconfundível, completamente destacável da multidão. A "outra", a indicação de uma semelhança, de algo compartilhado, de algo em comum - normalmente relativo ao objeto amoroso.
Assim, esse discurso lança-nos rapidamente nessa lógica da identificação que perpassa as preocupações dos humanos. Ou bem com qual o lugar reservado a cada um nesse mundo, ou mesmo com a pergunta a qual comunidade esse lugar pertence. Ou seja, algo que ao mesmo tempo faça uma unidade: individualize, particularize, singularize (não são a mesma coisa, apesar de indicarem unidades); mas ao mesmo tempo algo que possa interessar ao outro, ou seja, faça laço. O encontro de um universal coloca-se especialmente em relação à esta segunda preocupação. A questão é que aparentemente esses dois pontos se contrapõem. Qual o cerne dessa contraposição?
Para começar, seria possível encontrar uma proposta de universal - alguma coisa que pudesse ser comum a todos - na histeria? Podemos talvez encontrá-la naquilo que Freud propôs como modelo de identificação histérica: a identificação ao sintoma. Detenhamo-nos um pouco nesse modelo. No texto de Freud "Psicologia das Massas e Análise do Eu", temos no exemplo das meninas do pensionato a interrogação sobre o que teriam elas em comum. Citando o exemplo:
"...uma jovem aluna de um pensionato recebe de seu secreto amor uma carta que provoca ciúmes e à qual reage com um ataque histérico. Algumas de suas amigas, conhecedoras dos fatos, serão vítimas do que poderíamos denominar de afecção psíquica e sofrerão, por seu turno, um igual ataque. O mecanismo a que aqui assistimos é o da identificação, tornada possível pela aptidão ou vontade de colocar-se na mesma situação."(l)
O que teriam essas meninas em comum para terem o "mesmo" ataque histérico? Com razão o autor refere que isso em comum não se prende a algo compartilhado enquanto simpatia, que muito bem pode estar ausente da relação. Na impossibilidade de determinar as razões individuais, fica esse algo "em comum" preso nessa imagem fixada no que Freud chama ataque histérico. Poderíamos muito bem considerar que essa imagem pode ter um certo valor de universal para aquela coletividade na medida em que produz esse "em comum": essa identidade, esse laço que liga seus componentes. O que causa certa estranheza é que esse ponto em comum não se produza em algo "positivo", vamos dizer assim, mas no ponto de um certo desfalecimento. Essa espécie de caricatura, que o chamado ataque se torna, ocupa o lugar desse desfalecimento e produz esse compartilhamento, esse "como se fosse um" para todos. Assim, esse "em comum" mostra algo de falso (Freud chama de imitação), como se essa imagem, por ser caricata, trouxesse em si mesma uma certa denúncia.
Nessa mesma linha encontramos uma outra referência interessante para pensar nas notas do Seminário "Les Non-Dupes Errent", de Jaques Lacan. Está contida numa passagem que diz mais ou menos o seguinte: "...Este é todo o trabalho da organização, da organização imaginária, se podemos dizer: simular,...- e sempre temos de lidar com isso para daí recolher um grupo - simular com a multidão algo que funcione como um corpo"(2). Nessa passagem podemos situar pelo menos dois pontos de análise. Por um lado essa faceta da simulação, que é algo que pode ir ao encontro do texto freudiano antes exposto. Por outro, em relação a quê situa-se essa equiparação do grupo a um corpo?
Desenvolvamos alguns caminhos para pensar nessa vertente da simulação no lugar do corpo. Essa temática coloca em evidência algo bastante presente na sintomatização histérica: a condição de tomar para si qualquer discurso sobre o corpo e, principalmente, sobre um corpo que não funciona. Assim, na situação descrita por Freud o efeito que se produz - efeito de comunidade, ou mesmo de comunhão - podemos pensá-lo como o mais genérico que encontramos. Este grupo que "funciona como um corpo", segundo a expressão de Lacan, este "falso corpo", este corpo-imagem, pode ser atribuído à fundação de qualquer subjetividade. Isso na medida em que pensarmos, seguindo o proposto por Lacan no estádio do espelho, que o que organiza primariamente o corpo é uma miragem: uma imagem que se forma sem nada de natural que a sustente. Isso é nosso corpo. Assim, essa imagem do ataque histérico que "pega" de forma tão caricatural revela a verdade dessa fundação tão genérica desse corpo-imagem. A descrição desse efeito de instantâneo em que uma imagem pode ser capturada - e ao mesmo tempo capturar - no lugar desse corpo. Isso é perfeitamente pensável a partir de uma organização dessa natureza.
Esse desenvolvimento de Lacan aproxima-se do que Freud fala a respeito do sonho como realização de desejo e da realização alucinatória do processo primário, onde uma imagem se produz no lugar de uma realização. Ou seja, a um só tempo realiza falsamente (de modo que a tensão se mantém) e desnatura, perverte, de modo que nada mais se mostra tão eficiente como ligação do desejo.
O antes exposto tem algumas conseqüências que podemos destacar imediatamente. Uma delas é a seguinte colocação: visto que convivemos com uma multiplicidade incontável de imagens chega-se à conclusão de que não é qualquer instantâneo, não é qualquer imagem que pode vir a ocupar o lugar de funcionar como esse "falso corpo", seja na organização da comunidade, seja na organização individual. Logo, caberia perguntar-se a partir do que se dariam as escolhas.
Outra conseqüência é de que o instantâneo e a escolha aparentemente são excludentes: uma escolha implica a consideração e o reconhecimento de contextos distintos, de forma a que a necessidade de escolher se imponha. Um instantâneo aparentemente pode ser descontextualizado. Tentaremos pensar a referência ao contexto utilizando-nos de categorias temporais.
Em Freud, podemos definir uma preocupação com o contexto a partir de dois significantes de que ele se utiliza na descrição do aparecimento do sentido sexual para o ser humano. Esses significantes são: "prematuridade" e "posterioridade" (nachträglichkeit). Desde os primeiros escritos sobre a teoria do trauma, Freud liga a sexualidade e a interpretação do sexo a uma condição temporal. No texto de l895, constante do "Projeto de uma Psicologia para Neurólogos" - o capítulo "Psicopatologia da Histeria" - ele supõe que o que produziria o recalque seria o caráter de "prematuridade" que o sentido sexual se apresenta para o sujeito. Essa "prematuridade" não se evidencia no momento do acontecimento. Evidencia-se numa "posterioridade" (nachträglichkeit): na passagem de passivo a ativo, objeto a sujeito - na adolescência, quando uma interpretação do sexo se impõe.
Vale a pena destacar os elementos de que se compõe essa interpretação, utilizando o exemplo de Emma - caso analisado por Freud no capítulo antes citado. O destaque aqui vai para a cena a partir da qual surge o medo de Emma, a cena de sua puberdade, em que ela entra numa loja e encontra o sorriso de seus dois atendentes. Temos aqui o recorte de uma imagem - o sorriso - que passa a ser o representante do sentido sexual para Emma. Assim, "nachträglichkeit", na posterioridade o sentido sexual apresenta-se prematuramente ali onde Emma teria sido objeto sexual do Outro. Talvez fosse interessante perguntar por que o sorriso se recorta como representante do sentido sexual e não qualquer outro elemento. Arriscaria a seguinte suposição: o sorriso compõe um certo coletivo, uma certa intersecção de contextos. Tanto interpreta o sexual como sendo do Outro - num tempo "prematuro" para Emma - quanto interpreta o sexual de Emma nesse momento da puberdade. O sorriso é, então, esse "coletivo", isso que liga Emma ao Outro pelo sentido sexual. O sorriso pode servir também a essa caricatura do sexo do Outro, na medida em que se Emma é convocada a representá-lo nesse momento - passagem de objeto a sujeito - é porque algo desse sexo não se realizou, não se efetivou.
Desta forma, podemos entender o contexto em Freud como essa convocação à interpretação do sexo. É nessa convocação que se produz um cruzamento de contextos representado por essa dissimetria temporal, em que Freud tenta situar naquilo que chama de "prematuridade" do sentido sexual e "posterioridade" da interpretação do sexo. No sorriso produz-se um curto-circuito em que se congelam dois tempos: o do sexo do Outro (Emma-objeto, um tempo anterior, onde Emma teria sido “gozada”), o do sexo de Emma (Emma-sujeito, ali mesmo onde se produz um traço de seu gozo). Desta maneira, o sorriso é o representante tanto de uma dissimetria temporal, quanto de uma dissimetria de lugares, na medida em que encarna essa polarização sujeito-objeto. O aspecto caricatural que vínhamos abordando, e que pode ser pensado também em relação a esse sorriso, liga-se à aparente contraposição entre o individual e o coletivo. O sorriso, ironicamente, parece indicar: de quem é o gozo, afinal? O recorte do sorriso é o artifício que conjuga um impossível, provoca esse "em comum": uma comunidade no lugar de uma dissimetria.
Lacan vai mais adiante nessa espécie de "coletivo", utilizando-se também de categorias temporais. Ali a dissimetria não aparece tanto nessa diferença de contexto - prematuro, posterior, como no caso de Freud - ela é interna ao próprio texto. O ternário temporal proposto por Lacan - instante, tempo, momento - amarra o coletivo como um corpo. Isso acontece porque uma interpretação qualquer provoca e é provocada por uma defasagem de tempo, condicionando uma resposta coletiva. Acreditamos que essa defasagem já tenha sido suficientemente explicitada nos exemplos analisados anteriormente.
Cabe ainda acrescentar que os interpretantes das situações que destacamos são as chamadas formações do inconsciente. Nem sempre temos presente essa faceta do inconsciente. Gostamos de pensá-lo como o mais pessoal, intrínseco e recôndito lugar de um sujeito. Pelo contrário, o sujeito do inconsciente é resultante dessa conjugação individual-coletivo, no ponto em que essa conjugação se revela como impossível, no ponto desse "falso corpo". Assim, toda produção do inconsciente força o sujeito a "contar-se", com a diversidade de sentidos que essa expressão contém. Ou seja, a um só tempo produzir historicidade - narrativa de uma origem; singularidade - a fala a partir de um eu como um lugar enunciativo próprio; e inclusão - o ponto em que esse eu implica um coletivo do qual é resultante. O ato de contar-se é completamente tomado pelo sintoma.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD. S. - Psicologia de las Masas y Analisis del "Yo" - Obras Completas, Biblioteca Nueva, l974.(l)
- Proyecto de una Psicologia para Neurologos - Obras Completas, Biblioteca Nueva, l974.
LACAN, J. - Les Non-Dupes Errent - inédito. O título produz um duplo sentido pela homofonia entre "Os não bobos erram" e "Os nomes do pai".(2)
PORGE, E. - Psicanálise e Tempo - Ed.Campo Matêmico, l994.