O pagamento na clínica
Conceição Beltrão Fleig
A partir do convite da Comissão e Coordenação do Falando
nisso... para que dirigisse a vocês algumas reflexões a respeito
do pagamento na clínica, comecei a pensar por onde abordá-lo
e, fruto disto, recordei que desde as primeiras discussões para a criação
da Clínica de Psicologia da Unijui, a questão do pagamento já
estava presente. Nas conversas com a Professora Tânia M. de Souza lembramos
pontos desta discussão e na seqüência, com a Professora
Cristian Gilles, foi criada a oportunidade para a retomada de uma já
antiga mas não menos proveitosa interlocução. Portanto,
mesmo antes de ter começado a ser escrito, este texto já estava
me trabalhando, inclusive desde o tempo em que tive a rica experiência
de coordenar a CPU.
Por “cavacos de ofício”, vou me ater exclusivamente àquilo
que é pertinente à clínica psicanalítica, isto
é, fundada no conceito de transferência e que opera a partir
das formações do inconsciente.
Inicio com duas situações: uma delas é trabalhada por
Freud no caso do paciente que ficou conhecido como “o Homem dos Ratos”
e cujo relato se encontra no texto de 1909, intitulado “Notas sobre
um caso de neurose obsessiva” (Bemerkungen über einen Fall von
Zwangsneurose); a outra situação refere-se a um sonho de Freud,
que se encontra nas Correspondências de Freud a Fliess, relatado no
período de sua análise.
Antes de passar aos dois casos, considero importante fazer uma ressalva. A
análise de Freud é polemicamente denominada de auto-análise,
entretanto esta se dá na medida em que Freud se endereça a Fliess,
inventando, tanto com ele como com seus outros colegas nas supervisões
e nas análises de seus pacientes, uma nova forma de relação
com os outros, a partir da qual o inconsciente pode se representar. A dimensão
de uma análise pode se dar na medida em que falo a um outro que pode
escutar, no que digo, outra coisa para além do significado. Mas Lacan,
no Seminário Ainda, precisa que o escutar a partir da posição
do psicanalista é um escutar no qual se “lê de outra maneira
o que o analisante diz”.
Passamos então a examinar, nestes casos, como é que repercute
no pagamento isto que Lacan postula a partir de Freud: ler de outra maneira
o que o analisante diz.
Começando então pelo Homem dos Ratos, vou sucintamente recortar
o ponto que particularmente nos interessa aqui, mas sugiro a consulta ao insubstituível
trabalho de Freud, pois não vou entrar nas intrincadas associações
deste paciente. De acordo com Freud, os sintomas são desencadeados
quando o paciente escuta um de seus colegas de armas contar a respeito de
uma certa tortura na qual eram empregados ratos. Segue-se a isto uma situação
absolutamente banal que diz respeito ao fato da restituição
de uma quantia devida em função da encomenda de óculos
novos. A partir disso, o que se dá é de tal forma complexo que
os tradutores para a língua inglesa desenharam um mapa para seguir
os enlaces do conteúdo psíquico do analisante. Freud reconhece
este esforço, embora se mostre sempre cuidadoso em nos afastar de uma
positivação do discurso, ao colocar a construção
desta ideação obsessiva que se deu no momento em que foram abordados
os honorários e sua forma de pagamento:
“Aquilo que a punição com ratos nele incitou, mais do
que qualquer outra coisa foi o seu erotismo anal, que desempenhara importante
papel em sua infância e se mantivera ativo, por muitos anos, por via
de uma constante irritação sentida por vermes. Desse modo, os
ratos passaram a adquirir o significado de dinheiro. O paciente deu uma indicação
dessa conexão reagindo à palavra Ratten (ratos) com a associação
Raten (prestação). Em seus delírios obsessivos ele inventou
uma espécie de dinheiro regular como moeda-rato. Por exemplo, ao responder
a uma pergunta disse-lhe o valor de meus honorários por uma hora de
tratamento; ele disse para si próprio (segundo eu soube, seis meses
mais tarde): ‘Tantos florins , tantos ratos’. Paulatinamente traduziu
para a sua língua o complexo inteiro de juros monetários centrados
em torno do legado que lhe daria o pai; isso quer dizer que todos os seus
pensamentos correlacionados com aquele assunto se reportavam, por intermédio
da ponte verbal Raten-Ratten, à sua vida obsessiva e caíam sob
o domínio de seu inconsciente. Ademais, o pedido que lhe fizera o capitão
(o mesmo que fizera referência à tortura), para reembolsar as
despesas relativas ao pacote, serviu para fortalecer a significação
monetária de ratos, mediante uma outra ponte verbal, Spielratte”.
No caso, Spielratte significa rato de jogo que vai na direção
de uma divida de jogo contraída pelo pai durante seu período
na caserna.
Mas passemos para a segunda situação que pode ser localizada
na carta de Freud para Fliess, em 21 de setembro de 1897 , para o que também
sugiro a leitura, pois vou novamente separar apenas alguns elementos. Escreve
Freud: “o sonho de hoje trouxe o seguinte, sob os mais estranhos disfarces:
ela era minha mestra em assuntos sexuais e reclamava por eu ser desajeitado
e incapaz de fazer qualquer coisa. (...) Ao mesmo tempo, eu via o crânio
de um pequeno animal e, no sonho pensava em ‘porco’, mas na análise,
associei isso com o seu desejo de dois anos atrás de que eu encontrasse
no Lido, como fez Goethe, um crânio que me pudesse esclarecer. Mas não
o encontrei. Portanto, fui uma ‘cabeça dura’ (literalmente,
uma cabeça de ovelha). Todo o sonho estava repleto das mais mortificantes
alusões a minha impotência atual como terapeuta. (...) Além
do mais ela me lavava numa água avermelhada em que se havia banhado
antes. (...) E ela me fazia furtar zehners (moedas de dez kreuzers) e dá-los
a ela. Há uma longa seqüência que vai desde esses primeiros
zehners de prata até a pilha de dez florins que vi no sonho como o
dinheiro das despesas domésticas semanais de Martha. O sonho poderia
ser resumido como ‘mau tratamento’. Assim como a velha recebia
dinheiro de mim pelo mau tratamento que me dispensava, hoje recebo dinheiro
pelo mau tratamento dado a meus pacientes. Um papel especial foi desempenhado
pela Sra. Q., cujo comentário você me relatou: que eu não
devia cobrar nada dela, já que era esposa de um colega (é claro
que ele impôs a condição de que eu cobrasse).”
A carta que segue, datada de 15 de outubro de 1897, importantíssima,
pelo que já vamos examinar, continua com as associações
referentes ao sonho: “Perguntei a minha mãe se ela ainda se recordava
da babá. ‘É claro’, disse ela, ‘Durante meu
resguardo de Anna (dois anos e meio mais nova que Sigmund), descobriu-se que
ela era ladra (...). Seu irmão Philip foi pessoalmente buscar um policial;
ela pegou dez meses de cadeia’. Escrevi-lhe dizendo que ela me induzia
a roubar zehners e dá-los a ela. Na verdade o sonho significou que
ela própria os roubava. Pois o sonho era uma lembrança de mim
mesmo tirando dinheiro da mãe de um médico – ou seja,
indevidamente.”
Destas associações, Freud segue para o médico de sua
infância, cuja figura no sonho estava carregada de ressentimentos assim
como de seu professor von Kraus. Ambos possuíam um mesmo defeito, lhes
faltava um dos olhos. Portanto, do ressentimento ao médico (também
sua própria profissão) e a falta de um olho se encaminha para
uma cena que durante 25 anos vinha à sua lembrança sem que soubesse
do que se tratava. “Minha mãe não estava em parte alguma,
eu chorava, desesperado. Meu irmão Philip destrancou um armário
(Kasten) para mim e quando não achei mamãe lá dentro
chorei ainda mais, até que esguia e linda, ela entrou pela porta. Ao
sentir falta de mamãe, tive medo de que ela houvesse desaparecido de
minha vida, tal como acontecera com a velha, pouco tempo antes.” Freud
havia escutado que a mulher fora trancafiada, encaixotada (eingekastelt),
e sendo assim sua mãe também poderia ter tido o mesmo destino.
E em ambos os casos ele atribuía ao irmão o triste feito, pois
foi a este a quem recorreu para saber onde estava sua mãe.
O resto diurno que desencadeia este sonho é justamente o relato que
Fliess faz a respeito do comentário da paciente de Freud, que considerava
indevido ter de lhe pagar pelo tratamento. Então, do resto diurno que
se referia aos honorários cobrados da Frau Hofrat , Freud formulou
que: “Descobri, também em meu próprio caso, o fenômeno
de me apaixonar por mamãe e ter ciúme de papai, e agora o considero
um acontecimento universal do início da infância, mesmo que não
ocorra tão cedo quanto nas crianças que se tornam histéricas”.
Tomando-se a análise das duas situações pela via do narcisismo,
localizamos nas associações do Homem dos Ratos a referência
ao legado paterno, seu dinheiro/sua dívida, e no sonho de Freud, o
narcisismo da não menos ilustre Frau Hofrat, que serve de isca ao próprio
narcisismo de Freud. Se tivesse feito a economia da transferência, tratado
de seus honorários como um simples recebimento em dinheiro por um serviço
prestado, no caso de seu paciente, não teria sido enunciada a cadeia
das ideações que vai propiciar a seqüência desta
análise, e se tivesse mantido a etiqueta da época e não
cobrasse da esposa do colega, teria economizado nesta análise o aparecimento
desta cena: ela se queixa a um outro dos maus tratos recebidos pelo primeiro.
E em seu próprio caso teria economizado a si a formulação
do complexo de Édipo. Tristes economias, às quais podemos chamar
de resistência ao inconsciente. Mas esta é apenas uma primeira
tomada e Freud nos ensina a não ficarmos por aí.
Retomando a seqüência que se dá no caso do Homem dos Ratos,
podemos ler a insistência de Raten-Ratten-Spielratte, e no sonho de
Freud podemos ler a insistência de Kreuzers-Kasten-Kraus-eingekastelt
e avançar para o que Lacan, a partir de Freud, denomina de significante,
como sendo o elemento do discurso localizável tanto a nível
consciente como inconsciente que representa e determina o sujeito.
Sem entrar no mérito do que em cada caso aí está se repetindo,
localizamos a insistência da letra. E este é mais outro passo,
ou seja, o que Lacan propõe a partir do Seminário A lógica
do fantasma, no qual nos diz que a letra é a parte mínima do
significante, ou seja, seu suporte material. Portanto, na insistência
do significante, aquilo que determina o sujeito incide sobre uma letra. São
reuniões de letras que desfeitas e recompostas, de acordo com as regras
da contigüidade, podem produzir anagramas bem complexos. A isto Lacan
denomina de a instância da letra no inconsciente, e em Freud a localizamos
também em “A psicopatologia da vida cotidiana”, assim como
no caso do esquecimento do nome Signorelli, ou ainda no texto sobre o fetichismo,
no exemplo do brilho na ponta do nariz, e no trabalho exaustivo a respeito
da letra V no caso do Homem dos Lobos.
Ainda posso trazer aqui o caso de uma jovem bastante atrapalhada em lidar
com seu dinheiro, este se ia sem que soubesse no que gastara, lhe escapava
por entre os dedos. Na análise, passa a se referir a um período
específico de sua vida, por volta dos 12 anos, quando já solicitava
ter uma cópia para si da chave da casa e poder entrar e sair assim
como o fazia seu irmão mais velho. Na vivacidade de sua fala exclama:
“Eu queria ter o mesmo dinheiro”. Este ato falho, que incide na
palavra direito trocando-a por dinheiro, faz um jogo de substituição
literal que se efetuou no inconsciente e que lemos a partir do elemento mínimo
do significante que é a letra. Esse caráter literal do trabalho
do inconsciente levou Lacan a dizer, a respeito do lapso, que não havia
lapsus linguae, mas somente lapsus calami. Já o sonho nos mostra o
estatuto da letra no inconsciente através das imagens que devem ser
tratadas na interpretação como um rebus, quer dizer, literalmente
como os hieróglifos egípcios ou os caracteres chineses. Da mesma
forma deve ser tratado o desenho na clínica com crianças, pelo
seu valor literal; que a imagem possa cair para que se possa ler.
A partir disto, convido-os a refletir se o pagamento pode ter um destino diferente
que não o de um significante e não ser tomado em seu significado
como um dos elementos de um contrato, no qual analista e analisante se reduziriam
a partes contratantes.
Espero ter podido contribuir para esta discussão clínica e do
que possa ser um contrato, não aos moldes do contratualismo empírico,
mas de um contrato simbólico.
1
Psicanalista, membro da Association lacanienne internationale
2
Moeda da época na Áustria. Através de correspondências
sabemos que Freud costumava cobrar 10 florins por cada sessão de análise,
mas que em determinadas circunstâncias aceitava pacientes sem receber
honorários. Nas cartas entre Freud e Ferenczi encontramos uma discussão
pertinente das implicações decorrentes de cada uma destas situações.
10 florins também aparece como material do sonho.
3 Masson, J. M. A Correspondência completa de
Sigmund Freud para Wilhelm Fliess. Rio de Janeiro, Imago, 1986.
4 Refere-se a sua babá quando contava em torno
de dois anos, cuja presença e desencadeamento são de grande
importância em sua análise. O elemento “dois anos”
aparece como material em suas associações, mas em um endereçamento
a Fliess, de uma demanda deste.
5 Hofrat era o título honorífico concedido
a profissionais ilustres e a etiqueta vienense da época estendia esta
nominação a esposa. Outra nominação também
era a de Frau Professor. Estes significantes estão presentes nas associações
de Freud.